sábado, 30 de julho de 2016

Sou lógico, plenamente analógico


Sou lógico, plenamente analógico
no meu verso que une o universo
revejo o pão no colchão
o arranjo no marmanjo
e na peta do pateta
não topo pontos nem pespontos


Sou um tal que lida com o digital
sem a fatal idade da obscuridade
pois, que para esta pessoa, a broa
a cachopa que se topa
o tinto e a tinta com que repinta
a sardinha que se cozinha
assada e com salada
a fiada conversa, ou a perversa
a política até mesmo a paralítica
pode parecer digital que não é tal


Por prosódia por paródia
e por certeza na natureza
sei que é antológica a psicológica
mente e o tino do destino
- pois não há hiatos inatos -
sei que tudo é antropo – bio – axio – lógico,
caracteriológica mente analógico
no presente e no todo o sempre
seja na praia ou na cambraia
seja na caca ou na barraca


Daniel D. Dias

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Tarde cega


não esquecerei a cor dessa tarde:
era remota, tranquila, isenta de ameaças
havia odor a terra molhada e a feno
e o silêncio universal era pleno
de cânticos de grilos e de cigarras
salpicado dum ou outro chilreio de pássaro

tenho em conta a omnipresença do céu límpido e claro
e a certeza da água e da montanha por perto
a suscitar a sede de frescura e de sombras

eu caminhava, cego, pela tua mão
e pela proximidade do teu corpo
mas via com nitidez a terra afastar-se sob os meus pés
palmilhando o desígnio implacável do desejo

de pouco mais me lembro
retive a cor única, definitiva, dessa tarde
cor densa, comestível, que continha tudo
todas as cores, todos os ruídos
que me continha a mim e a minha própria cegueira


Daniel D. Dias

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Alfa e ómega

Sei que as palavras foram o princípio.

Antes das palavras não havia tempo
as manhãs eram sempre claras e eternas
as movimentadas tardes jamais terminavam
as noites, essas eram tremendamente escuras e infinitas
e não havia fronteiras nessa geografia sem horizonte

A génese das primeiras palavras não sei:
terão sido pedaços do mundo que quis reter?
sensações que recusei partilhar?
Mas como adorei esses mágicos rincões
indeléveis, que ainda hoje moldam a minha natureza!

Só muito mais tarde - talvez demasiado tarde
quando vislumbrei quanta areia perdia
por entre os dedos das mãos cerradas
as minhas palavras se tornaram gritos, apelos
instrumentos de busca de sentido, e algumas delas foram de amor

E descobri que as palavras, mesmo as melhores palavras
foram sempre o ectoplasma da vida
simulacros das coisas reais que dispensam nomes
que construíram o vácuo edifício da existência
no mundo cada vez mais ficcionado que partilho…

Agora sei que as palavras são também o fim


Daniel D. Dias

sábado, 16 de julho de 2016

Entardecer



A brisa da tarde cessou
deu lugar ao cálido entardecer
tempo de andorinhas tracejando o céu
farrapos da infância pairando dispersos

a mente, sem se anunciar, observa
nada busca
governa as palavras como pode


Daniel D. Dias