segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A hidra






Da remota hidra milacéfala um hálito pestilento subsiste
que ameaça de morte a pulsão pela luz, essa mutação persistente dos humanos

A verdade  - cada vez mais radiosa - decai sob esse hálito bafiento
estilhaça e decompõem-se nos pauis da miséria e do temor

Dos seus detritos se fabricam elixires que promovem glórias vãs
equivocas perfeições, avulsas felicidades temporárias

A hidra vai assim logrando recuperar a sua cabeça perdida
e força a humanidade a perder a sua e a regressar à primeva gruta onde nasceu

Daniel D. Dias

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Existirmento



Existirmento
momento a momento
a ento
a eito
é o meu tormento
o meu alento
que levo a peito

É a minha a-razão
a-lusa alusão
confusa confusão
ou, se melhor entendeis
o meu canhão
e provisão de ilusão
p'ra que vos encanteis

Para que exirtirmento
existirminto
invento
invinto
às vezes com algum tinto
e com sofrimento
pinto

ponto

Daniel D. Dias

terça-feira, 9 de agosto de 2016

"Pax americana" e cozidinho


Nada tenho contra os EUA. Sou grande admirador de muitos dos seus valores, valores que modernizaram mundo: do livre empreendedorismo, à liberdade criativa; do automóvel, à película fotográfica; da eletrificação, ao Macintosh; da vacina anti poliomielite à conquista espacial; do jazz à cultura pop; de Walt Whitman a Ernest Hemingway, balança toda essa minha admiração sincera que não se esgota aqui. Mas não aprecio a sua deriva imperial das últimas décadas, exportadora de violência militar e económica, de invasões a países soberanos, de suporte ativo a regimes retrógrados e desumanos, de difusão massiva de ideologias promotoras do egoísmo exacerbado e doentio, da apologia e banalização da violência, da subordinação da natureza e dos direitos humanos dos povos – incluído do seu próprio povo – aos interesses económicos dos grupos monopolistas que controlam o poder.

A dominância deste país tem criado raízes em quase todos os países do mundo. Sobretudo a ideológica, ou seja, a forma de pensar que subjaze a qualquer cultura. A “american way of life”, fortemente influenciada pelo condutismo de Watson, e, em especial, de Skinner, projetou-se de forma avassaladora por todo o mundo, gerando uma tal “americana pax”, recheada de contradições, de conflitos militares, de golpes de estado, de muito consumo supérfluo, de muita degradação ambiental, e de uma paz precária, ilusória ou muito condicionada.

Tudo isto foi possível graças à dominância que os EUA granjearam nos “media” mundiais. Hollywood foi naturalmente um dos seus pilares primordiais. Mas o controle que dispõem atualmente, direto e indireto, da internet, das centrais de comunicação e notícias, dos conglomerados de entretenimento e das redes por cabo, das centrais de distribuição dos conteúdos multimédia (filmes, séries, documentários), dos grandes grupos de publicidade, permite-lhes promover guerras “em diferido” – por exemplo as chamadas revoluções coloridas, as primaveras árabes -, tudo com menor necessidade de intervir diretamente no terreno, sobretudo com meios humanos. O armamento, o apoio mercenário, obviamente, também faz parte, mas segue depois.

Lembro-me que nos finais dos anos oitenta se discutia a possibilidade de liberalizar as rádios e as televisões em Portugal. Este fenómeno aconteceu em todo o mundo e em Portugal teve grande relevância. Depois de imensa controvérsia dominou a ideia que mais convinha à “pax americana”: acabar com a balbúrdia comunicativa que proliferava – a chamada “pirataria” - e entregar os “media” a grupos “civilizados” ligados a grandes interesses. Nasceu a SIC, a TVI… Na altura pagava-se uma taxa à TV pública, que era considerada um escândalo. Eram apenas alguns Euros por ano, mas geraram grandes protestos. Se havia publicidade paga, porque havia de haver taxa? Eu também protestei… Os novos grupos (e a nova orientação do setor) prometeram – a pretexto da liberalização – acabar com essas taxas. E assim foi, de princípio. Mas a situação aos poucos mudou radicalmente. A introdução da TV por cabo passou a ser paga, sem qualquer oposição. Depois começou a veicular publicidade (paga) na própria programação, apesar dos utentes pagarem um preço elevado pelo serviço. Mas nunca, até hoje, ouvi ninguém esboçar um esboço de revolta perante esta situação. Onde terá ficado essa contestação às taxas?

Mas o pior – para mim, bem entendido – é que estes serviços servidos ao domicílio e pagos principescamente, só veiculam a “pax americana”. Abro a TV (por cabo, claro) e só assisto à versão americana do mundo. Mais de 90% - não exagero - dos filmes e séries apresentados são norte americanos ou similares. Até mesmo nos canais ditos “Premium” (pagos à parte) só muito raramente e numa percentagem mínima se mostram filmes europeus ou de outras proveniências não americanas. Onde foi parar o “free cinema” inglês, a “nouvelle vague” francesa, o novo cinema alemão, o exaltante cinema italiano? Onde param os refrescantes cinemas, japonês, russo, canadiano, húngaro, jugoslavo? Nada sobrou? Eclipsaram-se? Ah: Os efeitos especiais massivos, as tecnologias de ponta, superaram tudo... É isso.

Outro aspeto pérfido deste predomínio ideológico da “pax americana” pode apreciar-se na singular coincidência temática dos filmes que nos são apresentados. Quando há qualquer acontecimento que aparenta fragilizar alguma faceta da “pax americana”, lá chovem os filmes que exaltam o papel dos americanos no mundo, seja na 2ª Guerra Mundial, seja na luta anti terrorista, seja nas diatribes da guerra fria, seja no universo dos super heróis… Será isto por acaso? Serei apenas eu (com a minha eventual má vontade) a reparar nisto?

O papel destes “media” controlados ajudam a deturpar a realidade e a também a história. Estudos mostram que a perceção de quem derrotou o nazismo alterou-se nas últimas décadas, eclipsando os verdadeiros vencedores. Muitos acontecimentos cruciais no mundo são, pura e simplesmente, suprimidos da agenda mediática. Pelo contrário incidentes pouco significativos, são empolados – quando não mesmo inventados – para apresentar relevância mundial e influenciar a opinião pública num ou noutro sentido. Mas o pior, para mim, é que nos aculturam, nos minam as raízes endémicas, sem nos acrescentar valor ou acrescentando muito pouco. Creio que para muitos de nós, certos atores americanos são mais familiares que os nossos próprios atores. No nosso cérebro estão eventualmente mais enraizadas as imagens dos lares, das urbes, das crises, das alegrias americanas, que as que ocorrem no nosso próprio seio. A globalização não é isto, não pode ser isto.

O hamburger e a salsicha, ao que parece, superam ou tendem a superar, as nossas comidas tradicionais. Não tenho nada contra salsichas, mas chateio-me com esse facto. Gosto de salsichas, gosto de hamburgers, mas prefiro um cozidinho. E não tenho nada contra a globalização… nem contra americanos.

Daniel D. Dias

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Prevenções estivais -3



No verão o universo aquático – o paralelo e intrigante mundo dos peixes – é mais subversivo. Quer mergulhemos nas águas ou nas cervejarias, os bichos aquáticos atrairão sempre o nosso interesse, e, há sempre o risco, de se passar de predador a isco e de sermos engolidos por umas dessa bocas gigantes que escondem em lugares inesperados ou recônditos.

Fica então o conselho: antes de te entregares a um pescado observa primeiro se o fazes na qualidade de isco ou de predador. De cabeça fresca, observa o habitat do bicho e o estado das águas. Sonda, engoda, lê os menus com atenção. Depois decide. E, se for caso disso, mergulha. Mas tem sempre uma bóia debaixo de olho.


Daniel D. Dias

sábado, 30 de julho de 2016

Sou lógico, plenamente analógico


Sou lógico, plenamente analógico
no meu verso que une o universo
revejo o pão no colchão
o arranjo no marmanjo
e na peta do pateta
não topo pontos nem pespontos


Sou um tal que lida com o digital
sem a fatal idade da obscuridade
pois, que para esta pessoa, a broa
a cachopa que se topa
o tinto e a tinta com que repinta
a sardinha que se cozinha
assada e com salada
a fiada conversa, ou a perversa
a política até mesmo a paralítica
pode parecer digital que não é tal


Por prosódia por paródia
e por certeza na natureza
sei que é antológica a psicológica
mente e o tino do destino
- pois não há hiatos inatos -
sei que tudo é antropo – bio – axio – lógico,
caracteriológica mente analógico
no presente e no todo o sempre
seja na praia ou na cambraia
seja na caca ou na barraca


Daniel D. Dias

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Tarde cega


não esquecerei a cor dessa tarde:
era remota, tranquila, isenta de ameaças
havia odor a terra molhada e a feno
e o silêncio universal era pleno
de cânticos de grilos e de cigarras
salpicado dum ou outro chilreio de pássaro

tenho em conta a omnipresença do céu límpido e claro
e a certeza da água e da montanha por perto
a suscitar a sede de frescura e de sombras

eu caminhava, cego, pela tua mão
e pela proximidade do teu corpo
mas via com nitidez a terra afastar-se sob os meus pés
palmilhando o desígnio implacável do desejo

de pouco mais me lembro
retive a cor única, definitiva, dessa tarde
cor densa, comestível, que continha tudo
todas as cores, todos os ruídos
que me continha a mim e a minha própria cegueira


Daniel D. Dias

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Alfa e ómega

Sei que as palavras foram o princípio.

Antes das palavras não havia tempo
as manhãs eram sempre claras e eternas
as movimentadas tardes jamais terminavam
as noites, essas eram tremendamente escuras e infinitas
e não havia fronteiras nessa geografia sem horizonte

A génese das primeiras palavras não sei:
terão sido pedaços do mundo que quis reter?
sensações que recusei partilhar?
Mas como adorei esses mágicos rincões
indeléveis, que ainda hoje moldam a minha natureza!

Só muito mais tarde - talvez demasiado tarde
quando vislumbrei quanta areia perdia
por entre os dedos das mãos cerradas
as minhas palavras se tornaram gritos, apelos
instrumentos de busca de sentido, e algumas delas foram de amor

E descobri que as palavras, mesmo as melhores palavras
foram sempre o ectoplasma da vida
simulacros das coisas reais que dispensam nomes
que construíram o vácuo edifício da existência
no mundo cada vez mais ficcionado que partilho…

Agora sei que as palavras são também o fim


Daniel D. Dias

sábado, 16 de julho de 2016

Entardecer



A brisa da tarde cessou
deu lugar ao cálido entardecer
tempo de andorinhas tracejando o céu
farrapos da infância pairando dispersos

a mente, sem se anunciar, observa
nada busca
governa as palavras como pode


Daniel D. Dias

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Esperança


Anoiteço.
Sei que as nuvens da dúvida
vão invadir os meus sonhos de liberdade
e que eu, uma vez mais, irei lutar por madrugadas claras

Oh, quem me dera que o sono
não fosse uma Arca de Noé
de evasões frustradas
de fantasias de abismais azuis sem fim

Sobra-me a vaga esperança
de que a mão da sabedoria
me acolha, generosa,
numa recôndita aurora de lucidez

E fecho os olhos
numa resignação confortada:
o amanhecer, amanhã,  poderá ser diferente;
poderá mesmo ser real…


Daniel D. Dias

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Na mesma hora



Esta borboleta
este fulgor que faísca
está viva em mim

É sonho, é memória
é ilusão
e nada é. Eu sei

E sendo nada, é tudo.

Este mim que transmigra
lá no fundo do mistério das palavras
fica em silêncio

Escuta os discursos mais descabelados
palpita, vibra com todas as emoções
mas queda silencioso

Ele sabe o valor do silêncio
fala mas sabe que no interior da sua voz
só o silêncio reina

No seu palácio de vento e nuvens
o vazio da grande luz
aquece corações:
esses que não têm perguntas
esses que apenas existem
e nem sabem que existem
e alguns, também, que apenas se deixam existir

Esta borboleta que vibra em mim
sente os raios de sol
aquece, por algum tempo,

morre e vive na mesma hora


Daniel D. Dias

domingo, 15 de maio de 2016

Temer (e) o preço das desigualdades


A clássica técnica policial de investigar a autoria dum crime começando por determinar, antes de mais, quem mais lucra com ele, é exemplar no caso do Brasil e, duma forma geral, em toda a América Latina e países Caribenhos. Que diabo, não são demasiadas coincidências e todas a apontar para o mesmo lado? Acho que não é preciso fazer um grande esforço intelectual para perceber quem lucra com a eventual derrocada dos governos que levaram ou levam a efeito políticas progressistas nos últimos quinze/ vinte anos. Quem lucra com a descida dos preços do petróleo, quem ganha com a desregulação da economia e das instituições?
O regresso às ”virtudes” do passado sempre foi uma constante quando as classes poderosas se sentem ameaçadas nos seus privilégios. Os promotores destas ideias, houve tempo, em que o tempo estava invariavelmente do seu lado. Mas creio que, atualmente, as coisas não são bem assim. Os retrocessos programados exigem hoje em dia, gestões e manutenções dispendiosas, impossíveis de suportar por muito tempo. E as lealdades entre cavalheiros de indústria também já conheceram melhores dias.
Estes movimentos fascistas ou fascizantes, que se vão implementando um pouco por todo o lado - ostensiva ou sub-repticiamente -, estão por isso condenados ao fracasso no curto ou no médio prazo. Creio que, na essência da economia mundial, há algo novo ainda não assumido, mas cada vez mais evidente: Sai cada vez mais caro gerar ou manter desigualdades do que procurar acabar com elas.
Talvez a praxis económica ainda esteja apegada a inércias do passado. As mudanças - como se sabe – não são lineares, pesam muito e são difíceis. Mas a caminhada na direção da igualdade social – estou convicto - é irreversível e imparável. Temer e o que ele representa é sem dúvida de temer. Mas Dilma, e o que ela representa, talvez ainda tenham uma palavra a dizer.
Daniel D. Dias

domingo, 8 de maio de 2016

A ameaça fascista



O fascismo é a expressão mais extrema e acabada da luta de classes. Este fenómeno está sempre latente, em menor ou menor grau, nas sociedade divididas por interesses antagónicos como é o caso de todas as conhecemos. Infelizmente décadas de progresso tecnológico e científico não lograram implantar os dois factores  capazes de travar esta doença social: a distribuição mais equitativa da riqueza gerada na sociedade, (facto que se manifesta vulgarmente na expansão da chamada classe média – as sociedades mais evoluídas têm uma classe média esmagadoramente maioritária), e a universalidade da educação pública de qualidade. Estes dois factores estão interligados e são interdependentes. O pecado original da nossa sociedade - que não se cansa de apelar à necessidade de  sermos mais competitivos – é não cuidar de assegurar - À PARTIDA - as condições básicas para concretizar esse potencial. Sem “paz, pão, educação, habitação” e  estabilidade garantidos, pelo menos ATÉ À MAIORIDADE A TODOS OS CIDADÃOS – e não apenas a alguns -, toda a competividade exibida não passa dum jogo viciado. Os mais aptos que acabam por ter sucesso, ou são fenómenos da natureza, ou tiveram algum tipo de vantagens que lhes permitiu ir mais longe. Mas a sociedade no seu todo, perde e perde muito.

O fascismo, nas suas múltiplas manifestações, (não se espere que os fascistas do seculo XXI se apresentem com indumentárias e discursos mussolinianos), resulta sempre dum excesso de pressão no equilíbrio social. É comum o fenómeno começar por uma reação excessiva das classes privilegiadas que sentem ameaçados os seus privilégios: Ou porque se lhes afigura que as classes subalternas lhe parecem pôr em causa os seus interesses, ou porque temem a ruina resultante duma concorrência descontrolada.  Mas a receita completa envolve os “media” (que elas próprias controlam)  e outras organizações de massas – certos partidos, organizações “religiosas” - que espalham o pânico e logram mesmo associar a este descontentamento – muitas vezes artificialmente empolado e induzido – as classes atingidas pela penúria: desempregados, gente forçada à marginalidade, revoltados e descontentes.

É porém  importante  que se sublinhe que o fascismo só é bem sucedido quando a ignorância política é dominante, e o povo – na sua grande massa – se apresenta desmobilizado, ou, ainda pior, dividido. É bom não esquecer que hoje em dia prolifera uma indústria do entretenimento e uma máquina de moldar opiniões, baseada na diversão e nos “media”…

A III Guerra Mundial – como (bem) dizia o Papa Francisco, há muito está em marcha. Ela ocorre em muitos pontos do mundo - exatamente neste momento -, mas parece que só uma pequena parte da humanidade entende, e se preocupa com o que se está a passar. Esta apatia ou mesmo indiferença é muito preocupante. Parece que ninguém percebe as ligações que existem entre determinados interesses – e políticas - ocidentais e as terríveis guerras que estão a ser incrementadas no Médio Oriente, na África e em certas zonas da Europa. O Estado Islâmico é apenas uma manifestação desse fascismo que avança… e que tem aliados. Alguns que até dizem combate-lo…

Mas nas Américas o fascismo também ameaça. No Sul – sob pretextos legalistas – uma a uma todas as democracias progressistas, as primeiras bem sucedidas em 500 anos! - estão sob séria ameaça. O desemprego, a miséria e a violência já são visíveis no horizonte. E o grande vizinho do norte, agora em maré de eleições – mostra uma vez mais o seu perfil tenebroso.

Que fazer?  Creio, antes de mais, que é preciso tomar consciência do que se está a passar. É preciso passar a observar com muita atenção e criticamente, toda a informação que vai chegando. Construindo uma visão clara, cada um de nós pode ajudar a esclarecer terceiras pessoas, especialmente aquelas que perdem muito com este clima de retrocesso. É também importante não reagir apenas com estados de ânimo. As emoções podem ser reações plenamente justificadas mas toldam frequentemente os raciocínio serenos, os que geram as decisões mais acertadas.

As ameaças são muitas mas creio que as forças da liberdade e do progresso acabarão por se tornar dominantes. No entanto só uma maioria de consciências cívicas, clarividentes e convictas,  poderá obviar a muito sofrimento inútil.   Faço votos para que as pessoas de boa vontade, de espírito livre, saudável e abnegado, tenham ânimo que baste para travar esta luta.


Daniel D. Dias


domingo, 1 de maio de 2016

Mãe

Mãe
é outra coisa
é outro estado da natureza

Mãe é mais que mulher
é mais que gente
é o princípio e o fim de tudo
é um perfume indefinido
uma humidade refrescante
que se cola ao corpo
que trazemos sob a pele
por toda a vida
mesmo sem darmos por isso

Secamos, envelhecemos
e essa água é a mãe que se vai
que se volatiza,
talvez no seu último esforço,
no seu último embalo
dum repouso mais profundo



Como sinto sede dessa tua água, mãe!



Daniel D. Dias

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Coisas do meu vizinho – 3 Eleições, esquerda, ideologia e bom senso



O meu vizinho afirma com frequência que “a esquerda política não é o que mostra ser mas o que de facto é”.

Os nossos encontros fugazes nem sempre permitem aprofundar estas questões. Mas agora com as presidenciais, surgiu uma oportunidade para lhe perguntar o que queria dizer com essa estranha afirmação.

- Não entende? – Respondeu-me aparentemente surpreendido. Então não vê que esquerda e direita são coisas diferentes dependendo do ponto de vista? Os nomes pouco significam e podem ser apenas uma camuflagem. Veja o caso do partido NAZI na Alemanha de Hitler. A sigla completa, NSDAP, em alemão, (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) é composta pelas palavras “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”. Conhece alguma coisa que pareça mais de esquerda? “Socialista e dos trabalhadores” e no entanto hoje ninguém duvida que essa organização não só era de direita mas de “extrema direita”, anti trabalhadores e anti socialista. Outro exemplo mais recente: os "Khmers vermelhos" ( militantes do Partido Comunista do Camboja que estabeleceu neste país asiático o chamado “Kampuchea Democrático” - Camboja Democrático). Eram “vermelhos”, democráticos, comunistas (ideologia que se identifica sempre com valores de esquerda), e no entanto perseguiram e mataram milhões de pessoas, em nome do povo… E há muitos outros exemplos.

Pausa. Olhou-me bem nos olhos talvez para ver se o assunto me interessava. E prosseguiu, num claro esforço pedagógico.
-Vamos lá a ver: Todos os partidos, organizações ou personalidades que chegam ao poder, fazem-no utilizando argumentos de esquerda, ou pelo menos, tentando agradar ao povo, que, por natureza, é a própria essência da esquerda. Por isso, para mim, é de esquerda o que é DE FACTO feito com intenção de favorecer o bem do povo – entenda-se, da grande maioria do povo e, sobretudo, daquela parte que mais precisa. Os nomes, as atitudes, as declarações, podem querer dizer alguma coisa, ou muito pouco, é isso que importa sempre ter presente. Claro, há o histórico, de indícios, de práticas, que, bem analisado, raramente engana. Mas esse histórico pode ser apagado, manipulado, deturpado, disfarçado, de forma a parecer outra coisa ou até o seu contrário. Estamos no domínio da ideologia, que engloba a cultura dominante, os hábitos, a arte, a educação e a comunicação. Entende?

Acenei que sim.

- O pobre vive a vida de pobre mas transporta na cabeça a mentalidade da classe dominante, dos privilegiados. Por isso os pobres – mesmo em democracia – elegem quase sempre os seus inimigos de classe. As organizações de esquerda lidam mal com esta realidade. Estão excessivamente preocupadas com lideranças, comunicam mal, são pouco práticas nas suas ações, preocupam-se mais com teorias do que com factos. Depois, não se unem, acenam com miragens e nem sempre cumprem o que prometem. Muitos ficam admirados com este fenómeno (do excesso de abstenção, dos pobres elegerem os ricos, do povo colocar a direita no poder) mas tudo isto, afinal, nada tem a ver com a “estupidez” do povo. Quanto muito tem a ver com a sua ignorância. Sobretudo com a sua ignorância política. Mas no cômputo final a verdade resume-se a isto: quem domina a comunicação e a ideologia dominante – que está presente em tudo: nas distrações, na cultura, nas tradições, nos filmes, nas telenovelas, no futebol – domina tudo… Quem tem dinheiro tem vantagem e a esquerda está em desvantagem porque, habitualmente, abjura, excomunga as técnicas de ganhar dinheiro, em vez de as dominar, de tirar partido delas...

Aqui o meu vizinho fez uma nova pausa, talvez para ver como estava a reagir. Como permaneci impassivo, prosseguiu.

- Percebe agora porque Marcelo foi eleito? – Perguntou com uma ponta de acinte.

Estava atordoado com o seu discurso compacto e assenti sem grande convicção. Pensava noutras razões: no abstencionismo, na falta de argumentos da direita (mas que mesmo assim ganhava…), e também nas divisões e da má campanha da esquerda… Mas o meu vizinho avançava noutra direção.

- Sabe: as pessoas receiam a mudança. Preferem ter uma vida medíocre a mudar. Sabe-se lá se a mudança não será ainda para pior… É o que sentem, é uma reação ancestral. Por isso “o sistema”, o que consideram “normal”, é que domina. As pessoas só mudam em duas circunstâncias: em desespero de causa – quando já não têm nada a perder e são impelidos a lutar (ou a fugir – veja o caso dos refugiados), ou por rutura cultural com o sistema vigente. Se as pessoas perderem o medo de pensar, se deixarem de se refugiar no devaneio, na fuga à realidade com diversões de todos os tipos, se se divertirem, a pensar e com outras diversões que são aquelas que se centram na realidade, que tiram partido dela, que procuram conhecê-la, então podem mudar e escolher outro modo de vida, mais humano, mais sustentável, mais seguro. Sem esforço de maior e até sendo mais felizes.

Pareceu-me tudo isso uma enorme miragem.

- Então não há esperança, não é? - Balbuciei, sinceramente desanimado.

- Há, pois. Pelo menos alguma. Quando há mais gente a divertir-se, correndo - a pé, de bicicleta, de para-pente, de skate –, mais gente interessada em conhecer o mundo real, divertindo-se a estudar, a compreender a realidade, que lida melhor com a liberdade, com a simplicidade, que não se interessa apenas em acumular riquezas, que gosta daquilo que faz e trabalha com gosto… Há esperança, pois. O bom senso demora mas quase sempre chega.

E, depois duma curta pausa, rematou a conversa com esta intranquilizadora frase:

- O problema, nesta altura, é saber se o bom senso chegará a tempo…

Daniel D. Dias